domingo, 10 de fevereiro de 2019

Iròkò ! Igi Olódùmàre!

  (Árvore do Senhor de Todos os Destinos)
                                                                                                                                                              Severino Lepê Correia

     Uma vez que nós, os povos negros não somos fabricantes de armas poderosas, portamos nossas crenças na vida parceira, na força de nossos Orisá através do Asé, o grande poder de realização; Iwà, o princípio da existência e Àbá, a orientação e o objetivo; o que permite a direção das coisas. São esses princípios, que nunca foram separados entre si, nem de nós, nem de nada. Que fizeram com que nossos ancestrais e nós até hoje, possamos enfrentar o trágico com dignidade e possamos cumprir nossa tarefa-destino, que é dar continuidade às nossas tradições.
Salientamos que isso não é um enunciado apenas profético, mas uma enunciação teimosamente política. Talvez isso explique porque Irokò, enquanto enorme Árvore, que só existe na África, tenha, enquanto Orisá, vendo o povo africano ser sequestrado, escolheu outras moradas sagradas para poder se mostrar presente. No Brasil escolheu a gameleira Ficus doliaria, que pode viver mais de dois séculos. Entre nós essa árvore abrigou o Orisá Iroko, e nele se fundiu passando a ser absolutamente necessária ao culto de nossas divindades.
Mas sendo Iròkò a Árvore Orisá pertencente a quem governa todos os destinos; e também um Orisá Árvore, ele tem a liberdade de ser o Vodu Lokô, para os fon do Benin; o Orisá Lorokê, do povo efã e dos Ijesá (Ijexá); o Nkise Tempo, para grande parte do povo Bantu; e para o povo Mahi (marrim) do Dahomey ( atual República do Benin), a morada sagrada de Azanaodô, um vodu masculino da família de Besén, o Osumarê dos Yorubá.
Para que nós possamos compreender a noção de parceria e família dentro dessa tradição - que uma grande maioria chama de demoníaca, coisa de pobre e analfabetos - o terreiro e os ritos ancestrais, enquanto escolas da existência nos oferecem mais uma lição de união na diversidade: “não é somente a gameleira, que abriga Irokò nas casas de candomblé do Brasil. No Tumba Insaba Junçara, terreiro angola do Rio de Janeiro, Tempo reside nas mangueiras. No Maranhão, o Vodu Loko, mora nas cajazeiras” (MARINHO&MARTINS, 2002, p.35). Vejam como Iròkò está e é o espirito de todas as árvores!
Em Cuba, é um grande atrevimento alguém ousar cortar um galho do Iroko. As pessoas preferem morrer de fome, a ter que cometer tal atentado. Mas no Sitio do Pai Adão, na cidade do Recife, aconteceu mais do que um atrevimento: houve um vilipêndio, um desrespeito à ancestralidade dos construtores desse país, hoje, entregue ao anti-humanismo colonial. Um inqualificável ato: o de atear fogo no maior Iroko brasileiro ainda vivo e exuberante dentro de um terreiro de candomblé. O desmoronar de um monumento secular, ocasionado pelo ódio, a nojenteza dos que incomodados, invejosos e deseperados por não possuírem uma tradição que os conforte, os conduza sem imbecilizá-los. Um ato dos que vivem perdidos no meio de monumentos emprestados e símbolos ameaçadores de flagelo e sofrimentos infernais. Coisas que não temos em nossas tradições.
Mas não se importem, senhoras e senhores do racismo e do desrespeito. O culto da Árvore, vem de longas e largas distâncias temporais. Se tivesse que acabar já teria acabado. Recebam nossa ouvação diante do que passará o couro de cada destruidor. Nós confiamos em Irokò, no seu renascimento. O fogo não lhe fez, nem lhe faz medo, por também ser morada de Aganjú, Orisá da família de Sangó, aquele que porta o fogo da justiça. 
Segundo o mito Yorubá da criação, Orisalá ao criar cada ser humano, fazia nascer ao mesmo tempo, uma árvore. Então, do mesmo modo que os seres humanos a ele pertencem, todos os “dobles” espirituais das árvores, também pertencem a Orisalá, aquele que simbólica e coletivamente é o poder ancestral masculino, representado pelos troncos e ramos das árvores. Portanto, esse mito é de fundamental importância para a compreensão do porque cada árvore sagrada é “paramentada com uma tira de pano branco – òjá-funfun – atada em torno do tronco [...]” (ELBEIN, 1976, p.77).
Até os raios e furacões respeitam Iroko. Até mesmo Oya-Mèsàn, a dona dos ventos e das tempestades, em seu estado megbé (meguê), poupa os que residem em Iroko, seu grande amigo. Por isso, estamos aqui atendendo a uma convocação, a um conselho ancestral que, apesar do tombo, não desertaram do Iròkò tombado porque o branco que simboliza a morte e o renascimento, nos veste do amor de Obàtálà Ògìyán, simbolizado pelo òjá que envolvia seu tronco e nos faz estar de mãos dadas, afirmando que: podem até matar nossos corpos mas não matarão a nossa fé, nossa confiança de que há um posto de honra na Árvore Sagrada, onde está Ògún, o vitorioso em qualquer modalidade de guerra. Estamos aqui porque sabemos que ao lado de Ògún e ao nosso lado estão as belicosas Obà, senhora da Sociedade feminina E’léékò (elekô), Oya a que comanda os egùn, e Ewa, a que “não tem medo de nada”. E ainda mais, aquelas que encabeçam os poderes místicos das mulheres comandando a Sociedade Gèlèdè: Òsun, Yèmánjá e Nàná. Como sabemos que “sem folhas não há Orisá”, todos os outros, reunidos em e por Iròkò, estão conosco e em nós. Mas queremos dizer também que paciência tem limites, e não nos deixaremos abater como ovelhas obedientes. Que o diga Babá Èsù, o senhor dos caminhos; e Obàlúaiyé, o comandante dos espíritos do mundo, dos ancestrais e dos mistérios.
Lições de bem-viver, de respeito a todas as naturezas, às diversidades e comunidades, é a grande diferença entre a tradição cultural negra e a tradição cultural branca que, infelizmente, alguns dos nossos a ela se venderam iludidos pela abstrata noção de poder, que coloca na frente a fantasia e deixa passar descuidadamente a existência. Nós enfrentamos as crueldades desde há muito tempo tocando, cantando, dançando, comendo e bebendo. Isso não quer dizer que nos alienamos, mas é com isso e dessa maneira que ensinamos politicamente aos nossos as lições ancestrais da resistência. Os Olugboohun͋ de Odé Òsósi, seguirão tocando e continuaremos a marcha, porque, Iroko como patrono da liberdade, mora no tempo e não aprecia prisões nem muros. Como é de terra, fogo e ar ele é o espírito da vanguarda e a cura, o feitiço e a guerra, e o eterno recomeço.
Iroko é o sustentáculo de toda humanidade, sempre de braços erguidos conduzindo esta gente negra nas lutas seculares e não morrerá enquanto aquilo que nos ergue. É um bastão interposto entre o parcial sucesso dos racistas e a continuidade das vitórias do povo negro, nos territórios dos vários continentes do planeta, escanchado em suas raízes profundas que organizam nosso quotidiano nos fazendo reconstruir a cada dia esse corpo melanínico universal, enfrentador dos separatismos, intolerâncias, comandos nefastos e gabolices sobre o que desconhecem. Enfim, nós somos Iròkò em sua universalidade pulsante, somos a pulsação de suas veias que racham o chão da fragilidade dos tronos de papel dos vaidosos seculares. Iròkò é o que nos akilomba e afirma as nossas tradições enquanto autoridade histórica, filosófica, científica e social, penetrando no mundo com seus tentáculos-raízes emanadas do coração da Grande Mãe Negra da comunidade humana, espalhada por esta Terra afora.

                                                                                Janeiro, 2019.
REFERÊNCIAS
JAHN, Janheinz, Muntu: Las Culturas Neoafricanas,Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1978
LOPES, Nei, Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana,SP: Selo Negro, 2004. 
MARINHO, Roberval; MARTINS, Cléo, Iroko, Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
SANTOS, Juana Elbein dos, Os Nagô e a Morte, Petrópolis: Vozes,1976.

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