quarta-feira, 26 de novembro de 2014

PAIXÃO É MUITO MAIS DO QUE GOSTAR



                                            Severino Lepê Correia

A paixão pela liberdade é capaz de gerar a continuidade da vida. Acreditar na vida
é sentir a cada passo a saudade do futuro, este hoje imaginado, tramado pela luta dos
ancestrais, construída pela dignidade, filha única da coragem de enfrentar a opressão:
esta imoral devoradora da infância dos sonhos. Estes, muito mais que devaneios, os
arquitetos dos desejos humanos.
Foram as paixões, os desejos e a dignidade, que insuflaram, em 21 de março de
1960, cerca de sete mil viventes a interpretarem o que é ser dono da própria vida,
mesmo diante de 260 anos de escravidão. Uma insurgência gerada no ventre da
Marcha das Mulheres de 1956, contra o apartheid , regime instituído na África do Sul
em 1948.
O protesto comandado pelo Congresso Pan-Africano contra a lei do passe, era uma
marcha pacifica em direção à chefatura de polícia, na cidade de Sharpeville, província
de Gauteng, onde as únicas armas dos manifestantes eram as mãos levantadas com
as palmas estendidas, em sinal de que estavam sem as miseráveis cadernetas de
passe, pedindo para serem presos repudiando aquela situação. Um protesto, mesmo
assim, agudo como o nome da cidade e a ponta das lanças dos guerreiros. Queriam
demonstrar a força da luta pacífica, a força da organização não violenta e a
impraticabilidade das leis do passe, além de marcharem para a consolidação da luta
pela independência, prevista para 1963. Não se podia ir e vir tranquilo aonde quisesse,
na sua própria pátria. No solo herdado de seus ancestrais, cuja maior fortuna seria o
repouso dos pés da posteridade, a proliferação dos frutos e gramas para humanos e
demais animais, além da riqueza dos metais preciosos em suas entranhas, o que
gerou a cobiça dos colonizadores.
A Polícia, apanhada de surpresa pela tática dos voluntários pan-africanistas que
marchavam pedindo para ser presos, chefiados por Mangaliso Sobukwe, um educador
metodista, e não podendo mais convencê-los a voltarem para suas casas, faz
acontecer em Sharpeville a resposta dada pelas submetralhadoras, revolveres e rifles
dos “chacais” comandados por Hendrik Verwerd, o primeiro ministro africâner,
ceifando oficialmente sessenta e nove vidas e covardemente mutilando mais de
duzentos, com balaços pelas costas. Não interessava se homens, mulheres ou
crianças: o grito de liberdade do negros africanos era uma ameaça e um desacato ao
poder da coroa e da cor dos europeus.
Não queremos vingança, mas liberdade!
Nem favores, nem a pena paternalista
Que também submete e fere a dignidade.
Queremos apenas de volta
A parceria com nossas montanhas
O canto antigo das cachoeiras
O crescimento dos pequeninos:
Engenheiros conhecedores da terra
Arquitetos de nosso caminhar
Médicos que nos conheçam pelo cheiro
E pela cor de nossos olhos, saibam como nos curar.
Queremos direitos antigos e garantias futuras.
Queremos nossas casas e caminhos
Para que nossa vergonha prisioneira
Tenha onde correr e morar
E se assim não for
Nossas mãos também saberão jogar
O feitiço contra os feiticeiros
O fogo sobre os fogareiros
Pois nossos ancestrais nos ensinaram:
Se não podermos viver pela independência
Nossos corpos e nosso sangue
Serão o nobre fertilizante da vida pela liberdade.
Em 28 de março, unem se, em volta dos caixões, os líderes do Congresso
Nacional Africano com os do Congresso Pan-Africano e decretam o Dia Nacional de
Luto, que custou a prisão de vinte mil pessoas, e o deflagrar de cento e cinquenta e
seis dias de combates intensos. Finalmente, repudiando a carnificina e o desrespeito
aos Direitos Humanos, em 21 de março de 1969, a ONU em conjunção com vários
países não alinhados com a destruição acontecida naquele momento, institui o dia 21
de março como o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial.              
                                                                           Março/2014
                                                                      

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